9 de novembro de 2011

Educação sentimental

Esfrego sua cara
No meu amor,
Como se esfrega
O focinho de um cão
Em suas fezes.

18 de outubro de 2011

Meu primeiro bolo

Dia desses resolvi fazer um bolo. Escolhi logo um com recheio e cobertura, nada muito simples. Disse à minha mãe que fizéssemos juntos, mas sabia que era o mesmo que pedir só para observar. Sabia também que ela jamais me permitiria fazer sozinho, pois não deixaria seu filho se aventurar naquele território, para mim inóspito, mas a ela tão familiar. Pedi então que apenas desse orientações, supervisionasse meu trabalho, sem que participasse ativamente da empreitada. Claro, vã tentativa, ela já pegara os ovos e começara a separar as claras das gemas. Como aprendera a fazer isso semanas antes, intervim:
— Sai daí, mãe! Deixa que eu faço. Você concordou em ficar só olhando e me dar dicas.
Surpreendentemente, foi assim até o bolo ir ao forno. Bati a massa, as claras, misturei o fermento. Despejei a massa na fôrma (untada pela minha mãe) e levei minha criação, uma massa fofa e gostosa de misturar, ao forno.

Havia combinado de visitar uma amiga. Faríamos uma pequena reunião, da qual participariam mais dois amigos da faculdade. Durante o tempo em que o bolo assou, fiquei pensando em como seria levá-lo a eles. Se ficaria bom, se seria elogiado, se valeria a pena ter escolhido logo esse dia para iniciar uma jornada sem volta ao mundo da confeitaria.
           Fantasiava com a possibilidade do deleite de meus queridos amigos, e essa cena tornava-se cada vez mais próxima e ganhava cada vez mais cores na minha imaginação. Agora já havia cenário e cada um tinha uma fala pronta  que seria interpretada de acordo com suas aptidões cênicas. Quase liguei para algum deles, com o intuito de adiantar a notícia do bolo e inculcar neles a expectativa que até aquele momento era só minha.
     Com pequeno esforço, detive-me e pensei no oposto, seguindo os instintos pessimistas que constantemente me acompanham. E se o bolo não desse certo? Certamente eu teria de inventar uma boa desculpa. Mas, se ninguém soubesse do meu fracasso, eu poderia ficar tranquilo. Minha mãe, que tomava banho, só saiu de cena depois de me orientar, dizendo que quando se espeta um palito de dente no bolo e ele sai limpo, é sinal de que o bolo está pronto.

         Resolvi espetar o tal palito. Fechei a porta da cozinha para não entrar vento, abri o forno, puxei a fôrma com um pano para proteger as mãos. Percebi que a massa estava mole, e ao devolver o bolo ao forno, sacudi delicadamente a fôrma e a massa sacudiu junto. Fui acometido por uma súbita sensação de fracasso. Embatucado, vagava pelos cômodos da casa. Ia à sala, à cozinha, ao banheiro, à cozinha, ao quarto, à cozinha. E a cena do deleite ia aos poucos se apagando, junto com toda a alegria que já não sabia para onde tinha ido.
“Pronto, nunca mais farei um bolo na minha vida. De onde foi que eu tirei essa ideia besta de fazer bolo? Ah, esquece, deixa para lá. Ainda bem que eu não avisei ninguém.” Não me restava nada senão esperar a opinião precisa, o diagnóstico profissional, o laudo médico atestando a hora e a causa do óbito — o parecer de minha mãe.
Para meu espanto, as informações técnicas contidas no laudo afirmavam que o óbito não ocorrera e que o paciente gozava de plena saúde. Isso mesmo, minha mãe disse que o bolo estava bom, que a massa estava bem assada, com uma consistência ótima e um cheiro delicioso. A enorme nuvem de frustração que pairava sobre minha cabeça esvaiu-se e trouxe de volta aquela alegria, junto com a cena quase apagada na imaginação. “Então o bolo deu certo! Ninguém poderá contemplar meu fracasso porque... não houve fracasso!”
Faltava fazer a cobertura. Com a dose de ânimo gerada pela boa notícia, bati os ingredientes da cobertura, enquanto aguardava que o bolo esfriasse. Como eu esperava, minha mãe o cortou pela metade e montou o recheio, pois isso é mesmo coisa para profissionais. Cobri o bolo e acrescentei algo mais: castanhas picadas, que foram compradas para uma receita que desistimos de fazer.
Levei a surpresa à pequena reunião de amigos. O deleite realmente ocorreu, e foi ampliado a todos que tiveram a oportunidade de provar o bolo. Minha irmã e minha cunhada pediram a receita. Fui requisitado para fazer aquele bolo no dia dos pais, no Natal e na festa que um amigo pretende fazer em sua nova casa, assim que se mudar. O bolo ganhou vida, tornou-se independente de seu criador e superou as expectativas modestas que havia construído para ele. Agora me dê licença, que meu segundo bolo está no forno.

Nota: O texto foi escrito em julho de 2005. Outros bolos sucederam o primeiro (até aprendi a cortá-los ao meio!), mas jamais houve tanta expectativa quanto da primeira vez.

23 de setembro de 2011

Vegetariano

Margarida, Rosa, Hortênsia.
Só comia carne
De flores.

20 de setembro de 2011

4 de agosto de 2011

Cuidado

Não ultrapasse a linha amarela
Risco de ferimento cardíaco grave

11 de julho de 2011

Sonhos

Tentei alimentar meus sonhos,
Mas eles cagaram no meu travesseiro.

8 de junho de 2011

M.

Gamine da nouvelle vague
Volúpia noir
Lábios coração vermelho-sangre entre a fumaça
E olhos de gato siamês

Silêncio, beco, sombra
Mistério
Nunca sei
Nikkei

24 de maio de 2011

No lugar

"Mantenha a cabeça no lugar!"
Que lugar?

Todo lugar?
Lugar-comum?
Lugar nenhum?

Alugar.

19 de maio de 2011

No teto

Em divagações,
Olho para o teto
– Projeto –
(Secreto)
Tão perto!

Nada vejo.

22 de abril de 2011

Respeitável público!

Marc Chagall

Hoje tem alegria? Sei não, senhor. Hoje tem palhaçada? Sei não, senhor. Mas tem pipoca, o ingresso é grátis e tem lugar pra todo mundo. O algodão-doce acabou.

O aniversário do blog Markitoland é quatro dias antes do aniversário do palhaço (o blog é, portanto, mais velho que eu).

Palhaçadas foram, e ainda são, várias. Desde o título – pouco inspirado e nada original – ao subtítulo, que já foi “escritos quase escrotos” e por enquanto é “o mundo é um circo em cerco”. O palhaço parece gostar de um bobo jogo de palavras, contanto que não seja tão bobo assim. E às vezes fala de si mesmo em terceira pessoa.

A palhaçada começou com sonetos. Mas logo passaram a caber no circo outras atrações, como algumas Notas sobre a sociabilidade contemporânea, algumas brincadeiras como Tecnostalgia coisa nenhuma! e O princípio da cueca azul e poemas em versos brancos e livres. A prosa também ganhou seu lugar.

Depois, vieram as Simboníricas, que o leitor atento já sabe estarem todas ligadas ao circo.

A cara do circo também não era assim, embora sempre tenha sido cinza. Agora é essa coisa aí que não define se é circo ou parque de diversões. Dá no mesmo, continua cinza. Hoje tem alegria?

Em um ano o blog aprendeu a andar, embora não tenha ido muito longe. Aprendeu a falar, embora não tenha dito muita coisa. Aprendeu a metaforizar, embora nem tudo seja representação.

Escolha um lugar e sente-se. O espetáculo ainda não acabou.

13 de abril de 2011

Felicidade

Felicidade
É placidez.
Intensidade,
Epíteto da angústia.

3 de março de 2011

Samba-enredo genérico

Iluminou
No céu de estrelas alva luz se anunciou
Vem meu amor
Vem naufragar na terra mãe do Criador
Os portugueses quando aqui chegaram
As caravelas
Aí vieram os jesuítas
A catequização dos povos indígenas
Nessa terra de tanta alegria
Desbravada pelos bandeirantes
Mãe África, seus filhos que aqui sofreram
Palmares, símbolo de liberdade
Aos olhos do Imperador
Iluminou

A terra, o amor, a natureza
Os povos em miscigenação
Os brasileiros, harmonia
É muita emoção

22 de fevereiro de 2011

Buraco

Há de se andar
Olhando para cima,
Senão o buraco
Cai em você.

16 de fevereiro de 2011

A mancha

Começou com uma fisgada na parte interna de seu braço esquerdo, entre a axila e o cotovelo. Onde antes não havia nada, surgira uma mancha escura, de limites bem definidos, embora disforme. Confuso, passou o dedo sobre a mancha, depois lambeu o dedo e passou de novo, mas a mancha permanecia inalterada.

Passou o resto do dia pensando naquela mancha, sobre o que poderia ser e, principalmente, por que teria aparecido tão repentinamente. Por vezes se distraía, mas o pensamento logo voltava. Duas ou três vezes flagrou a si mesmo olhando para o braço, esticado a quarenta e cinco graus de seu corpo e ligeiramente torcido para fora, uma posição ridícula de manter enquanto andava pelas calçadas da cidade. À noite, veio-lhe a esperança de que a mancha não estivesse lá no dia seguinte, de que talvez se tratasse de um sonho. Nada melhor do que dormir para dar fim a um sonho.

No dia seguinte, a mancha ainda estava lá. Levantou-se com um salto e esfregou novamente o braço, os olhos ainda embebidos de sono, a imagem desfocada. Foi para o chuveiro e saiu com o braço vermelho de tanto atrito com a esponja, mas não adiantava. Mal conseguiu engolir um café e foi para o trabalho. Passou a manhã inteira com dificuldade de se concentrar, uma mancha em seus pensamentos. À tarde, conseguiu uma consulta com um dermatologista, dizendo que seu caso era urgente.

– Parece um sinal de nascença – disse o médico, ao examinar a mancha em seu braço.

– Mas como, se ontem mesmo não estava aí?

– Não há registro de algo semelhante. Em todo caso, parece apenas uma mancha inofensiva. Não há sinal de câncer, nada com que se preocupar.

– Está dizendo que não sabe o que é?

– Podemos fazer uma biópsia, mas julgo desnecessário – disse o médico, com convicção.

Optou por fazer a biópsia e foi informado de que o resultado sairia dali a uma semana. Ao sair da clínica, pensou em procurar explicações em outro lugar, como um médium, um vidente, um pai de santo ou algo do tipo, mas logo desistiu da ideia. Seu ceticismo era puro demais para ser maculado.

Passou a semana inteira sem que a semana passasse, os olhos no relógio, a mancha nas ideias. Ligava para o consultório em dias alternados, perguntando do exame, um breve chiado na ligação e o aviso de que deveria aguardar a data agendada. No trabalho, sua reputação já não era a mesma, seu rendimento caíra muito. Exasperava-se com qualquer falha de impressão que borrasse um relatório, qualquer poeira que caísse nas lentes de seus óculos. Chegou a correr de um dálmata que latiu para ele detrás de um portão.

No dia marcado, o envelope nas mãos do médico tinha seu nome, com um acento no lugar errado. O resultado do exame foi decodificado:

– Trata-se apenas de um excedente de pigmentação, como lhe havia dito. Podemos fazer um clareamento.

– Mas por quê?

– Por que fazer o clareamento? – perguntou o médico, sem entender.

– Por que essa mancha?

– Não é possível especificar a origem, a causa, mas podemos tratar...

– Por quê? – gritou, saltando da cadeira e já se voltando para a porta. – Eu preciso saber por quê!

Ao sair do consultório, a secretária tentou contê-lo, sem sucesso. Tudo o que viu foi seu braço esquerdo empurrando-a para o lado, a mancha de relance. Ganhou a rua e correu, tudo virando vulto. Parou em frente a uma lavanderia, arquejando, os braços apoiados nos joelhos. Olhou para a esquerda e viu seu braço, a mancha faltando.

– Onde está? Para onde foi? – berrava, indignado. As pessoas passavam por ele, olhando-o com espanto.

Depois disso, não se ouviu mais falar dele. A família e os poucos amigos perderam contato.

Foi visto recentemente, conversando com um canteiro de flores.

1 de fevereiro de 2011

Simbonírica 5

O volante mal cabia em suas mãos. Sentia-se sufocado por estar em um espaço tão apertado, o encosto do banco no meio de suas costas. Curvava-se sobre o painel com a cara próxima ao para-brisa.

Saiu daquele minúsculo carro e viu uma enorme placa vermelha com a palavra PARE. Seguiu andando e entrou em um bar. Queria pedir algo, mas não conseguia ver o que havia por cima do balcão. Já fora difícil entrar, e seria impossível, não fosse a escada convenientemente posta ao lado da porta, permitindo-lhe se pendurar na maçaneta.

Fora do bar, um dos dedos de seu pé ficou preso a um bueiro. Puxou o pé para desprendê-lo e, sem que entendesse como, foi engolido. A situação não tinha tamanho, como ele não o conhecia.

Grande demais para brincar, para obedecer, para acordar tarde. Pequeno demais para ser independente, para fazer uma revolução, para ser responsável.

Forte, bom, grande e belo. Pusilânime, impiedoso, insignificante e rancoroso.

O anão e o gigante.

20 de janeiro de 2011

Heptapoema

A carne sublima.
Feita pura razão,
A alma se eleva
E sangra.

Membros arrancados,
Gritos de horror,
Súplicas inúteis,
Sangue no jornal.
O crime.

Bebia para esquecer.
Melancólico,
Continuou a beber
E esqueceu de morrer.

Gira, gira, gira...
O invisível
Em movimento.

O ser
E sua negação.
O espírito.
Depois, o ser-aí.

Entre ser e parecer,
Entre ir e ficar,
Entre si e outro,
Duvidava.

Ao vir ao mundo,
O que se recebe
É absurdo.

19 de janeiro de 2011

Heterônomo

Calado, acato.
Pacato, aceito.

Resignação.

Reino onde não reino.

14 de janeiro de 2011

13 de janeiro de 2011

12 de janeiro de 2011

Hecatombe

Estamos morrendo,
Mas cada um a seu tempo
E a seu modo.

Fugir da hecatombe
É outra diáspora.

11 de janeiro de 2011

Hematomas

Quando nos acostumamos
Aos hematomas,
Eles resolvem
Desaparecer.