15 de julho de 2010

Notas sobre a sociabilidade contemporânea - Parte II

O homem do século 21 oscila entre o ridículo da crença e a insuficiência da razão.

Ao negar a racionalidade e afirmar a crença, perde lugar no universo de abstrações sobre o qual são edificadas a moral e os valores de uma época. Incapaz de questionar a produção de tais abstrações pelo engessamento confortável de suas crenças, acomoda-se em sua posição e a defende contra tudo e todos, agarrado ao escudo que o protege do imprevisível.

Por outro lado, destituído da crença e decidido a seguir a razão, é solapado pela total ruptura com valores de épocas anteriores, que atribuíam sentido e ordenamento à vida, e que lhe davam a segurança ontológica necessária.

Sem religião, toma dois possíveis caminhos: ou atribui à ciência um caráter dogmático, substituindo a religião, ou persiste em sua empreitada de questionar a realidade. As consequências da primeira opção são a subordinação às afirmações “comprovadas cientificamente” (desconsiderando todo seu processo de produção e sua veiculação nos meios de comunicação) e a restauração da segurança ontológica sobre o alicerce da mãe-ciência. A segunda opção, entretanto, pode levar ao desespero e mesmo à imobilidade pela total ausência de sentido.

Na impossibilidade de aceitar explicações metafísicas como fundamento da realidade, alguns acabam por entender que vivemos num mundo em que quase tudo o que nos rodeia é produzido por nós, e contém em si mesmo – embora sempre ocultada – toda a história das civilizações humanas e seu processo de produção material. E é da não ruptura que surge o choque das contradições que nos constituem. Velho e novo, pulsional e racional, cristão e ateu, convivem em nós de forma habitual, mas não sem consequências. Ateus conhecem na boca do estômago a culpa cristã, racionalistas agem irracionalmente pela falha no domínio de seus impulsos, e nossos projetos variam entre novas formas de sociabilidade e velhas formas de manutenção de valores tradicionais.

A saída – se é que há alguma – seria, pela compreensão da imanência da vida humana, crer no próprio humano. Olhamos para nós e vemos o pior: irascibilidade, belicismo, rancor, medo, angústia, e uma aterradora capacidade para destruir. Tudo isso, mas também todos os seus opostos. A razão, como um dos itens nessa longa lista, é totalmente incapaz de subjugar as outras características e submetê-las ao seu controle. E suponho que nem haveríamos de querer assim. A previsibilidade de tudo o que diz respeito ao humano possivelmente nos desumanizaria.

Mas se for – e não afirmo que seja – essa a saída, como crer em algo tão contraditório como o próprio humano? Algo que parece nos espreitar e esperar pela próxima oportunidade para nos apunhalar cruelmente pelas costas, traindo aquilo mesmo que tínhamos em mais alta conta?

A contradição está posta: crer sem crença.

6 de julho de 2010

Homem bonito

            Ana e Eduardo, Simone e Carlos estavam num barzinho, bebendo e conversando. Depois de algumas cervejas e assuntos diversos, começaram a falar sobre um bar GLS, onde foram na semana anterior. No meio da conversa, Simone exclamou:
— Nunca vi tanto homem bonito no mesmo lugar! Pena que gostam da mesma coisa que eu.
Enquanto Eduardo deteve-se em comentar a segunda frase, Simone continuava segurando a mão de Carlos.
— Nossa... Tinha cada um lá... Meu Deus! Mas tudo bem, homem bonito não é pra namorar mesmo.
Carlos esboçou alguma reação, apertando de leve a mão de Simone, mas ainda sem contrair qualquer músculo do rosto. Ana concordou:
— É mesmo, né? E aquele professor de educação física, o Roberto?
— Nossa... Aquilo que é homem! — disse Simone. — O Roberto é tudo que uma mulher pode querer.
Eduardo olhou para Carlos, que continuava impassível. Carlos levou o copo de cerveja à boca, olhando fixamente para Simone, quase sem piscar. Ela seguiu em suas considerações:
— Mas ele também é muito pra mim. Você sabe, né, amiga? Um homem desses não dá pra namorar, todo mundo quer. Prefiro...
Dessa vez, Carlos se virou para Eduardo e perguntou alguma coisa sobre o trabalho, antes que pudesse ouvir o final da frase, talvez por achar que não suportaria o que quer que viesse depois. Eduardo não assimilou a pergunta e comentou:
— Se ela tá falando que homem bonito não é pra namorar, ela quer dizer que...
— O preço da gasolina aumentou de novo, você viu que coisa? — Carlos começou a achar que já dominara o timing da interrupção. — Onde é que a gente vai parar?
Eduardo percebeu a iminência da precipitação que antecede a tempestade. Respondeu com um simples “pois é” e pediu mais uma cerveja ao garçom. Simone continuou segurando a mão de Carlos, sem perceber qualquer incômodo causado por suas palavras. Pelo contrário, ficava cada vez mais eufórica na descrição de Roberto:
— Lindo, louro, alto, olhos azuis, um corpo maravilhoso. Fica ótimo em qualquer roupa...
— Também... com um corpo daqueles — anuiu Ana.
— E que corpo! Mas eu não quero saber de homem assim, bonito, forte... Imagine eu com um homem desses. Quer dizer, só imagine, porque só dá pra imaginar mesmo. Ai, aquela voz no pé do ouvido...
Carlos soltou a mão de Simone bruscamente. Dessa vez, foi Eduardo quem tentou desviar a atenção de Carlos.
— Você não acha um absurdo como tratam as vacas na Índia?
— Hã? Vacas? Por falar em vacas...
Carlos chegou ao limite de sua paciência e voltou-se para Simone:
— Pô, Simone! Esse cara só tem qualidades? Duvido que seja tão perfeito assim.
Ana, notando que as mãos de Carlos seguravam o copo com força quase suficiente para quebrá-lo, decidiu amenizar a situação.
— Peraí, Carlinhos, ele não é perfeito, não. O Roberto é um cara vazio, sem conteúdo. A gente fala assim porque ele é um gostoso mesmo, mas um cara desses não acrescenta nada. Não é, Simone?
— Talvez não, né? Mas... Vai saber...

(08/08/05)