O homem do século 21 oscila entre o ridículo da crença e a insuficiência da razão.
Ao negar a racionalidade e afirmar a crença, perde lugar no universo de abstrações sobre o qual são edificadas a moral e os valores de uma época. Incapaz de questionar a produção de tais abstrações pelo engessamento confortável de suas crenças, acomoda-se em sua posição e a defende contra tudo e todos, agarrado ao escudo que o protege do imprevisível.
Por outro lado, destituído da crença e decidido a seguir a razão, é solapado pela total ruptura com valores de épocas anteriores, que atribuíam sentido e ordenamento à vida, e que lhe davam a segurança ontológica necessária.
Sem religião, toma dois possíveis caminhos: ou atribui à ciência um caráter dogmático, substituindo a religião, ou persiste em sua empreitada de questionar a realidade. As consequências da primeira opção são a subordinação às afirmações “comprovadas cientificamente” (desconsiderando todo seu processo de produção e sua veiculação nos meios de comunicação) e a restauração da segurança ontológica sobre o alicerce da mãe-ciência. A segunda opção, entretanto, pode levar ao desespero e mesmo à imobilidade pela total ausência de sentido.
Na impossibilidade de aceitar explicações metafísicas como fundamento da realidade, alguns acabam por entender que vivemos num mundo em que quase tudo o que nos rodeia é produzido por nós, e contém em si mesmo – embora sempre ocultada – toda a história das civilizações humanas e seu processo de produção material. E é da não ruptura que surge o choque das contradições que nos constituem. Velho e novo, pulsional e racional, cristão e ateu, convivem em nós de forma habitual, mas não sem consequências. Ateus conhecem na boca do estômago a culpa cristã, racionalistas agem irracionalmente pela falha no domínio de seus impulsos, e nossos projetos variam entre novas formas de sociabilidade e velhas formas de manutenção de valores tradicionais.
A saída – se é que há alguma – seria, pela compreensão da imanência da vida humana, crer no próprio humano. Olhamos para nós e vemos o pior: irascibilidade, belicismo, rancor, medo, angústia, e uma aterradora capacidade para destruir. Tudo isso, mas também todos os seus opostos. A razão, como um dos itens nessa longa lista, é totalmente incapaz de subjugar as outras características e submetê-las ao seu controle. E suponho que nem haveríamos de querer assim. A previsibilidade de tudo o que diz respeito ao humano possivelmente nos desumanizaria.
Mas se for – e não afirmo que seja – essa a saída, como crer em algo tão contraditório como o próprio humano? Algo que parece nos espreitar e esperar pela próxima oportunidade para nos apunhalar cruelmente pelas costas, traindo aquilo mesmo que tínhamos em mais alta conta?
A contradição está posta: crer sem crença.